Clarice não é mulherzinha
- Ivan Hegen
- 23 de fev. de 2019
- 4 min de leitura
Publicado originalmente no site Cronópios em 19-12-2007
“Quando uma mulher escreve um romance protagonizado por uma mulher, todo mundo considera que está falando das mulheres; mas se um homem escreve um romance protagonizado por um homem, todo mundo considera que está falando do gênero humano.” A frase é da espanhola Rosa Montero, que a meu ver se defendeu com maestria. Ainda assim, muito me impressiona que uma escritora com o talento de Clarice Lispector seja, por algumas pessoas, incluída em uma espécie de panteão desditoso, um grupo nebuloso que seria o das “escritoras mulherzinhas”. Não são os marmanjos os únicos a fazer coro, pois conheci também ávidas leitoras que diziam detestar praticamente todas as mulheres que escrevem, sendo Clarice a primeira a levar pedradas.
Lembro de uma conversa que tive com Tony Monti, um ou dois anos atrás. Entre uma cerveja e outra, ele me contou de seu mestrado sobre Clarice, e que, por mais apaixonado que fosse por sua obra, era compreensivo com todos que torcem o nariz para ela. Disse que Clarice não é para todos os gostos, e isso não é uma questão de inteligência nem de sensibilidade – ou você entra em sintonia com ela ou não entra. Concordo. Estamos falando de uma autora que vai até o limiar da loucura, e, além de isso ser agradável apenas para os temperamentos mais kamikazes, aquilo que arrasta cada um para sua própria insanidade é muito específico. Por exemplo, em Água viva: “O outro lado de mim me chama. Os passos que ouço são os meus.” Para mim, e para muitos outros, o livro inteiro é um mantra poderoso que convoca a um encontro radical com este outro lado, primordial, atávico. Mas para muita gente não faz o menor efeito. E não acho que deveria fazer - seria preciso já ter uma natureza meio psicótica, fragmentada, cambiante. O mesmo se pode dizer para os momentos mais epifânicos de suas narrativas, como o de um cego mascando chicletes em Amor, ou a ingestão da barata em A paixão segundo G.H. Nessas passagens se deflagra, com minúcia obstinada, a mais intensa perplexidade diante das coisas. Ou, como tive que ouvir uma vez de uma ex-namorada – frase que quase irrompeu em crise conjugal - nada mais do que as queixas de uma mulher em TPM.
Somos obrigados a aceitar que Clarice não desperta grandes coisas em algumas pessoas, não há como negar. Mas é fato que, para nós que a admiramos, sua obra é tão viva e pulsante que encerramos a leitura metamorfoseados. Exaustos e felizes, porque transcorremos a quarta dimensão do instante-já, porque aceitamos correr o sagrado risco do acaso, ou simplesmente por percebermos o quão cegas são as folhas, e que verdes elas são. Ainda que ela busque, às vezes, uma “delicadeza de borboleta branca”, nenhuma escritora pode mais equivocadamente ser tachada de mulherzinha. Clarice é a pessoa mais traiçoeira de que tenho notícia: ela te mostra um pequeno milagre, em seguida dá um soco no estômago. E é por essa dupla generosidade que eu a amo como minha segunda mãe. Ela diz ser o estado de horror diante das coisas, no entanto insiste em viver apesar de. É apesar de que ela se permite alguma leveza. Não só porque a ternura pertence ao que ela chamaria de oblíquo da vida, mas também para não te assustar e não te perder. Há motivos concretos para cautela: ela é perigosíssima, não tenha dúvidas quanto a isso. Às vezes eu acho que meus maiores desatinos se devem inteiramente ao fato de ter lido seus livros.
Aliás, dizer que Clarice está acima do rótulo de mulherzinha ainda é dizer muito pouco, ou quase nada. Sua obra não está acima apenas do sexismo. Há um desconforto com a condição humana em sua totalidade, que às vezes se refugia no animalesco, às vezes no cósmico. Ela confessa uma nostalgia, a de não ter nascido bicho; e, no silêncio, percebe a respiração contínua do mundo. Porém, mesmo essas fugas são pouco para Clarice: sua escrita, inquieta e insaciável, aspira estar acima da própria escrita. Suas palavras buscam algo tão nu e tão verdadeiro que tornaria insuficiente qualquer significação. “O nome é um acréscimo, e impede o contato com a coisa. O nome da coisa é um intervalo para a coisa”. Sem precisar se denominar existencialista, Clarice explora temas semelhantes aos de Sartre, no entanto, escreve melhor que ele. Não se trata de fanatismo, é mera constatação. Estar diante de Clarice é situar-se no próprio limite das sensações e do pensamento, sob riscos, irreversivelmente. Tão radical é sua apreensão da realidade que busca mais do que a matéria, busca o que de mais puro se apreende do Real. Não existe a mínima chance, em um artigo curto como esse, de transmitir a dimensão da potência de sua obra. Contento-me em desfazer um último engano, dessa vez cometido pela autora. Ela disse, em uma folclórica entrevista para a TV Cultura, que escrevia sem esperança de alterar as pessoas ou a realidade. Ela já estava no final da vida, o câncer a corroia, ela mal disfarçava sua desilusão. No entanto, não fosse por Clarice, de que outra maneira aprenderíamos a chegar a este nada que é o próprio âmago - este vivo e úmido nada?
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