Prefácio para o livro "Dízimos" de Thomas Fairchild
- Ivan Hegen
- 29 de mai.
- 4 min de leitura
Conheço o Thomas desde que éramos calouros na faculdade de Letras da USP. Décadas atrás eu já considerava um privilégio conviver com sua imaginação desnorteadora, que em conversas de bar já nos conduzia para lampejos do insólito e continha em gérmen sua vocação literária. Não fiquei de todo surpreso quando ele me disse que iria materializar parte de seus devaneios em livro e muito me honrou o convite para este prefácio. Antes mesmo da leitura eu tinha confiança de que estaria diante de peças singulares. No contato direto com os textos, minhas expectativas foram superadas.
Por mais que a nostalgia me distraia, não vou esquecer da minha tarefa principal aqui, que é apresentar a obra do Thomas Fairchild a quem não o conhece e aos que imaginam que o conhecem mas ainda vão se perder no labirinto de uma escrita que desregula nossas bússolas. Não me arrisco a estabelecer uma unidade para este desafiador conjunto de contos. Há uma bela multiplicidade aqui, uma voz autoral que varia consideravelmente o tom, o ritmo, o tema, ora nos mostrando a língua, outra piscando um olho, cuspindo no chão, ou nos comovendo com um momento de ternura. Talvez em algum momento um abraço, em outro um abandono, e a qualquer momento pode nos sobrevir um susto ou um estranho afago.
Não são nove os contos de Dízimo, são dez menos um. A ausência palpita, a literatura respira nos interstícios, fazendo-se e se desfazendo na incompletude. O tributo a se pagar deste dízimo não segue para igreja alguma, pois o autor evoca uma etimologia assombrosa, em que o termo se associa ao castigo romano para tropas insurgentes. No decimatio, uma legião rebelde seria dividida em grupos de dez, e por meio de sorteio um deles teria que ser punido pelos demais. Dizimação, é esta a solenidade, o sacrifício que o título sugere. Curiosamente, a erudição que nos transporta à antiguidade romana nos é presenteada, no conto que batiza o livro, pelo personagem mais rústico do conjunto: um narrador de idade mental indefinível, que nos comove apesar da brutalidade, pois conserva a inocência dos que não foram lapidados pela sociedade.
O autor por trás das narrativas por vezes esboça um sorriso fugaz como o do gato de Alice. Seria ele o escritor que se depara com o narrador de Dízimo? Ou quem sabe ele coincida em algum ponto com o Thomas mencionado no conto Venha para onde está o sabor? No entanto, as advertências não nos permitem confiar em narrador algum, pouco importando se o nome por vezes coincide com o do autor ou se responde por identidades mais instáveis e fictícias. Sejam sujeitos ou objetos da ação, os personagens deste livro costumam ser esquivos como o inquilino que deve altas somas de dinheiro e causa transtornos a ponto de roubar o fúmeo sabor dos cigarros.
É o fim do mundo apresenta uma faceta mais acadêmica, é o Thomas Fairchild professor que nos introduz a um classicismo grego, mas o mito de Jasão e Medeia é invadido por elementos contemporâneos, como se os argonautas fossem repaginados por internautas. O conto Benditos sejam, por sua vez, me lembra um filme de sessão da tarde pré-internet, Conta comigo de 1986, baseado em história de Stephen King. Nos dois casos, a ocorrência de um cadáver nas imediações de uma pequena cidade é vista como uma benção pelas crianças curiosas e aventureiras. Encontrar o corpo antes das autoridades poderia render uma relativa fama, e mais que isso, significar a passagem da inocência infantil para uma vida mais adulta. Um outro conto nos mostra que o ecletismo das referências de Thomas não prescinde do bom e velho rock and roll: em Freie Stadt Danzig, o narrador é assaltado no ônibus por um rapaz que vestia a camiseta do Misfitis. O narrador lembra que era fã de Danzig quando jovem, e suas associações introspectivas o absorvem mais do que a perda objetiva dos itens roubados. Somente por pressão do cobrador ele desce na delegacia, e é contra a vontade que participa de uma ronda na viatura policial. O apreço pela estética pesada do rock e uma indiferença blasée parecem diluir o antagonismo que se esperaria entre assaltante e assaltado.
Ironia e estranhamento fazem parte do estilo de Thomas. Isto se nota, por exemplo, em A fila, onde a caminhada humana carece de sentido, reduzindo-se ao incômodo absurdo da sequência de passos que não sabemos aonde nos levam. Em Entre amigos, um homem infiel busca agoniado uma cumplicidade masculina no balcão de consertos de celulares. Os segredos vislumbrados são pornográficos e denotam a paixão pelas aventuras e pelo perigo. Já em Vidas Mortas, um homem desperta de um acidente com amnésia total mas pouco se interessa por resgatar suas lembranças. Tal como um recém-nascido, prefere reinaugurar-se como se outra pessoa fosse – e talvez o seja.
Enfrentando agora minhas próprias falhas de memória, resgato antigas lembranças. Relembro como éramos tímidos, todos do nosso grupo de amigos na Faculdade de Letras em 1998. Éramos os qu - e haviam sofrido bullying no colégio, os que no ensino superior buscavam remodelar a autoimagem de maneira a encontrar no mundo um lugar menos hostil. Ao ler estas páginas, sinto que aquele samurai que disparava lentamente as palavras mais inusitadas após estudar e revirar o fluxo das conversas juvenis, sinto que hoje ele encontra sua posição paradoxalmente esquiva e assertiva. Thomas Fairchild, com o sobrenome norteamericano de seu pai, os traços nipônicos de sua mãe e estatura acima da média mundial, assume aqui uma estrangeiridade em nossa própria terra. O conhecido se revela insólito.
Serviço:
Dízimo - Dez menos um conto
Thomas Fairchild
Editora Folheando
R$ 47,00
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